sexta-feira, 17 de junho de 2011

Maculados Lençóis

Para Henry Miller, no inferno.


Tenho medo do momento de abrir os olhos toda vez que compartilhamos o sono. Decerto não compreendo a origem deste medo, e embora já tenha desistido de fazê-lo, ainda o sinto vividamente a cada vez, como um sintoma tragicamente vulgar do amor anunciado.
Abro os olhos vagarosamente. Com os braços delicadamente encolhidos em meu peito, ela ainda dorme. Eu estou curvado, nossos pés se encontram, e um de meus braços repousa entre suas coxas. É uma manhã fria, mas o espaço entre aquelas coxas é quente. É a parte mais quente de seu corpo, seguido por seu pescoço.
Desvencilho-me do quase abraço sem acordá-la, tenho sede e preciso mijar, mas ao invés disso acendo um cigarro. São oito horas da manhã. Caminho até a janela, abro uma pequena parte da cortina e percebo que, lá fora, o cotidiano já está a todo vapor, mas aqui dentro o tempo permanece relativo.
Visto uma camisa amassada da noite anterior e a observo em seu sono. Ela está seminua e é sempre muito convidativa, mas carrega uma pureza essencial que me constrange pelos meus pensamentos. A fresta de luz que, pela janela, invade o quarto parece acordá-la. Ela estica os braços juntos, coça os olhos e deixa entrever um leve sorriso, mas em seguida vocifera e me repreende por fumar tão cedo no dia. Ainda assim, pede um trago para si própria. Eu atendo o pedido. Com nenhuma outra dividi meus cigarros senão com ela. Enquanto traga o maldito, ela me puxa pelos ombros e sopra a fumaça em minha boca. Um beijo vem depois, seguido de um “bom dia”. “Bom dia” - penso – mas nada digo, apenas sorrio.
Eu a amo, e o faço nos detalhes. Ela me pergunta as horas, ainda tem sono. Eu lhe digo para dormir mais um pouco, mas ela detesta dormir quando eu já levantei. Ela me pede uma camisa, mas me abraça antes de vestir. Ela está com fome e me pede café, mesmo sabendo que não tenho café pronto. Ambos sorrimos da obviedade das coisas, e ela vai ao banheiro satisfazer suas vaidades. Ela é vaidosa mas não é fútil, como se deve ser, e isso me agrada constantemente.
Eu estou apoiado em uma bancada, o cigarro já acabou, e eu observo a cama agora vazia. Rio sozinho pois a cama está uma bagunça, e assim vai permanecer até que a hora de dormir chegue novamente. Os lençóis estão sujos e ela os detesta. Tece observações cotidianamente sobre os meus deslizes em meu compromisso com a higiene. Ela diz que eles estão ali há dois meses, mas eu respondo que os troquei semana passada. Ambos sabemos que é mentira, mas eu insisto porque adoro a forma como ela ri de minhas mentiras óbvias.
Os malditos lençóis, além de amassados, estão cobertos de fluidos – os meus e os dela – os dos diabos e dos santos, de todos os budas e também das ave marias. Cubro meu desleixo com a prerrogativa de que sou um cara apegado às memórias, e não existem memórias mais fortes do que as memórias do corpo.
As roupas dela estão pelo chão. O quarto permanece com um odor quente e felino da noite anterior, e aqueles lençóis completam a atmosfera sacralizada. Um verdadeiro templo. Eu já sei o que vou ouvir no momento em que ela sair do banheiro, mas anseio pelas mesmas palavras das quais não canso jamais. Se deus existisse ele seria primeiramente observado nos detalhes, tenham certeza disto.
Poucos minutos depois ela reaparece no quarto, diz que me ama, amaldiçoa os lençóis e anuncia que não há nada melhor do que acordar ao meu lado. Milan Kundera uma vez escreveu que o amor não se manifesta pelo desejo de sexo, mas pelo desejo do sono compartilhado. Eu tendo a concordar com esta afirmação.
Eu a empurro na cama e, entre uns abraços e outros, ela ameaça iniciar uma greve de sexo caso aqueles lençóis não sejam trocados. Eu rio debochadamente da ameaça e duvido severamente dela.
Mas troco os lençóis.

domingo, 19 de dezembro de 2010

obra-prima

eis as mais belas palavras que já saíram de mim um dia:

que se fodam todos os poetas.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

confissão

A primeira vez que me disseram que havia algo de autodestrutivo em mim achei graça, confesso.
Ainda que já tivesse vivido grande parte de tudo aquilo que hoje me é insuportável e caminhasse as mesmas ruas fedidas a hipocrisia da cidade, ainda não me dera conta do quanto me sentia perfurado pelos pares ao meu redor: a juventude burguesa a qual pertenço, seus modelos e classificações. A criação deles, que também é a minha, os valores aprendidos, compartilhados e, com sorte, descartados. Todo o controle, o envenenamento, e o julgamento cotidiano. Implacável julgamento que nos impomos a todo instante que fazia minhas entranhas se retorcerem como uma alma torturada e sem salvação.
Mas a idéia de que havia algo de autodestrutivo em mim, de alguma forma ainda soava engraçada.
Até que o conjunto de contradições que nos compõem, e compõe a mim, me abateu de súbito. Por um lado - e este lado se traduzia em minha formação de cientista social - me fascinavam os seres humanos, suas manifestações e construções de sentidos. Por outro, tudo neles me afastava em direção à solidão, temível espectro que passei a combater com a adorável companhia de senhores tais como Albert Camus, Kierkergaard e Hermann Hesse, todos muito sábios, e também já mortos há pelo menos meio século.
Foi quando comecei a perceber que o mais terrível não estava a meu redor, mas dentro de mim.
Eram todos os meus valores conflitantes, e visões de mundo constantemente avariadas pelo cansaço, e cada uma das percepções empiricamente testadas que eu projetava nas pessoas que tornava o meio insuportável. Eu os repelia, pois me via em cada um deles. Uma imagem triste e retorcida do mais puro eu.
Foi aí que a idéia anunciada, outrora engraçada, se tornou incômoda no âmago do que eu sempre imaginei ser. De modo que, parafraseando alguém que já nem me lembro quem, posso dizer que encontrei o abismo: está em mim.
E a partir de então comecei a detestar aquele pseudo-intelectual autodestrutivo que lia Sartre no metrô, cuja face idêntica à minha avisto constantemente pela janela espelhada da composição.
A face que me persegue cotidianamente e que, temo, não me abandonará jamais.

é.

sei lá, tava relendo tudo o que escrevi aqui e achei meio patético, pretensioso.
é isso.
o mundo me soa pretensioso.

terça-feira, 23 de março de 2010

a filha do vento

Agradam-me as folhas caindo no outono, o rio que vai apressado, e as histórias de amor nas esquinas das ruas. Agradam-me as crianças gritando enquanto escrevo, a brisa suave, e a lembrança tua. Agradam-me as memórias perdidas, resquícios do teu sorriso, e nossas palavras ao vento.

Que no vento de outono se perdem, e trazem de volta tudo outra vez.

E então não me agradam todos os dias longe de ti, e ter de admitir que foste tu o mais belo poema que jamais escrevi.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

mentiras, verdades e conhaque

mas eram tão bonitos teus movimentos
trágicos, pretensiosos
e se a morte da beleza anuncia o fim
hei de saber
se morreremos todos por festejos vendidos
à varejo
ou mentiras tão reais quanto teus beijos?

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

volta

sou e serei, mais.
menos o bastante
pra sermos ainda
o que fomos um dia.

outrora dissestes
os donos seremos
do mundo e de nós
e seríamos sempre
se fosse tu
excedente de amor
dos meus dias

a mais valia?